Tudo era harmonioso, sólido, verdadeiro. No princípio. As mulheres, principalmente as mortas do álbum, eram maravilhosas. Os homens, mais maravilhosos ainda, ah, difícil encontrar família mais perfeita. A nossa família, dizia a bela voz de contralto da minha avó. Na nossa família, frisava, lançado em redor olhares complacentes, lamentando os que não faziam parte do nosso clã. […]
Quando Margarida resolveu contar os podres todos que sabia naquela noite negra da rebelião, fiquei furiosa. […]
É mentira, é mentira!, gritei tapando os ouvidos. Mas Margarida seguia em frente: tio Maximiliano se casou com a inglesa de cachos só por causa do dinheiro, não passava de um pilantra, a loirinha feiosa era riquíssima. Tia Consuelo? Ora, tia Consuelo chorava porque sentia falta de homem, ela queria homem e não Deus, ou o convento ou o sanatório. O dote era tão bom que o convento abriu-lhe as portas com loucura e tudo. “E tem mais coisas ainda, minha queridinha”, anunciou Margarida fazendo um agrado no meu queixo. Reagi com violência: uma agregada, uma cria e, ainda por cima, mestiça. Como ousava desmoralizar meus heróis?
TELLES, L. F. A estrutura da bolha de sabão. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Representante da ficção contemporânea, a prosa de Lygia Fagundes Telles configura e desconstrói modelos sociais. No trecho, a percepção do núcleo familiar descortina um(a)
A) convivência frágil ligando pessoas financeiramente dependentes.
B) tensa hierarquia familiar equilibrada graças à presença da matriarca.
C) pacto de atitudes e valores mantidos à custa de ocultações e hipocrisias.
D) tradicional conflito de gerações protagonizado pela narradora e seus tios.
E) velada discriminação racial refletida na procura de casamentos com europeus.
Solução
No trecho a narradora-personagem tenta preservar a imagem de uma família perfeita e tradicional, sem espaço para críticas, semelhante à visão idealizada de sua avó. No entanto, essa fachada de harmonia começa a desmoronar quando Margarida decide expor os segredos e hipocrisias escondidos, revelando as imperfeições e “podres” familiares, apesar da resistência da narradora em manter as aparências.
Alternativa C